Mudar de vida IV: Cabo Verde – Parte 2

Para além do que vos contei aqui sobre a minha estadia em Cabo Verde, estive também envolvida, durante 17 dias, num projeto de monitorização e conservação de tartarugas marinhas na Reserva Natural de Santa Luzia, na ilha com o mesmo nome.

Santa Luzia é a ilha mais pequena de Cabo Verde, com apenas 34 km2, e faz parte do grupo das desertas, onde se encontram também os Ilhéus Raso e Branco. No passado, foi habitada por uma pequena população, mas a aridez da terra e a falta de água fizeram com que fosse abandonada. Toda a ilha faz parte de uma área protegida de acesso reservado devido às suas características únicas e espécies endémicas que alberga.

Na ilha, a Biosfera1 é responsável por vários projetos de proteção e conservação, entre os quais o das tartarugas.

Estão presentes nas águas de Cabo Verde 5 das 7 espécies das tartarugas marinhas que existem no mundo, mas apenas uma, a Caretta Caretta, escolhe as praias cabo verdianas para desovar.

As tartarugas são uma espécie cada vez mais ameaçada a nível mundial e, infelizmente, para além de todos os desafios que têm que enfrentar para chegar à idade adulta (estima-se que, em cada 1000 tartarugas bebés, apenas uma chegue a esta idade), temos que juntar mais uma peça à equação: o homem. As tartarugas marinhas ainda são alvo de caça para consumo em muitas partes do mundo, e Cabo Verde não é exceção. Apesar de recentemente se ter tornado uma prática punível por lei e de a população estar cada vez mais sensibilizada para os problemas da espécie, a verdade é que a apanha ilegal ainda existe. A Biosfera1, assim como outras associações ambientais do país, continuam a trabalhar de forma incansável para alterar esta realidade, mas mudar comportamentos e consciências não é algo que se consiga de um dia para o outro. Para além da captura para consumo, milhares de tartarugas morrem também quando ficam presas involuntariamente em redes de pesca e através da ingestão de plástico, que confundem com alimento.

Tartaruga a dirigir-se para o mar após a desova. Se repararem, dá para perceber que foi atacada por um tubarão, pois não tem parte da carapaça e da pata traseira.

Por todas estas razões, e por forma a contribuir para a conservação desta espécie, todos os anos a Biosfera1 tem uma equipa de forma permanente no terreno, na época de nidificação, que acontece entre os meses de junho e outubro.

Tive o privilégio de me juntar a esta equipa, como voluntária, durante pouco mais de duas semanas e continuo a não conseguir colocar por palavras tudo o que vivi por lá.

O dia começava às 4h20 da manhã, para sairmos do acampamento em direção às praias às 5h. Por volta das 6h, quando o dia começava a clarear, começavam as patrulhas. O trabalho consistia em contar o número de rastros, assinalar os ninhos, perceber se existiam tartarugas desorientadas e/ou a deslocar-se para o lado oposto ao mar (ou feridas, por ex.), verificar se existiam ninhos predados (por caranguejos fantasma), fazer translocações de ninhos sempre que os mesmos se encontrassem em condições críticas (muito próximo da maré, por ex.) e salvar tartaruguinhas bebés que por algum motivo não conseguiram chegar ao mar. Normalmente, as tartarugas desovam de noite e as crias saem também nesta altura, razão pela qual se começa tão cedo pela manhã. Caso contrário, as tartarugas (e as tartaruguinhas bebés) que estejam perdidas ou desorientadas podem facilmente morrer de desidratação sob o sol quente do verão.

Escusado será dizer que ver e apreciar estes animais é mágico. Não se pode dizer que as tartarugas sejam as melhores mães do mundo (colocam os ovos e está feito), mas o cuidado com que fazem e tentam ocultar os ninhos é notório. No início, tenho a dizer que me enganavam bem e, só com o olho bem treinado é que se consegue começar a identificá-los mais facilmente 😊

Santa Luzia foi especial a todos os níveis. Foram 17 dias sem acesso a rede de telemóvel, internet, eletricidade e água canalizada, mas de uma profunda paz e conexão com a natureza. 17 dias a tomar banho no mar e a ver o sol nascer na praia.

Ri muito, chorei outro tanto, enfrentei-me de frente e lidei com muita coisa que tinha cá dentro. Perdi-me, encontrei-me e fui eu em cada segundo, sem filtros, sem medos, sem reservas, sem camadas.

Nascer do sol

Escusado será dizer que voltar à civilização depois disto foi um tanto ou quanto desafiante, mas só tenho a agradecer que a transição tenha sido feita primeiro em Cabo Verde e só passadas 3 semanas para Portugal, caso contrário acredito mesmo que tinha apanhado um avião de volta assim que aterrasse no aeroporto de Lisboa. A luz, o brilho, as lojas, o consumo, as pessoas, o exagero, as coisas que não importam. Foi um choque.

Desde que voltei, não consigo tirar do peito a sensação de que já não pertenço a esta terra e que esta vida é demasiado efémera.

Passará? Eventualmente?

De todas estas experiências, fica a certeza da missão, mas a dúvida quanto ao caminho.

“You are so afraid to feel your feelings, in the belief that you will die of the pain of it.
The truth is, you will die if you do not go for the feeling.”
Ptaah


Esta publicação foi a última de uma série de quatro, dedicada à minha mudança de vida e luta por aquilo em que acredito. Podem ver a primeira aqui e ficar a perceber como é que esta mudança se deu na minha vida. Podem ler a primeira parte do relato da aventura em Cabo Verde aqui.

 

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