A vida por um fio

O vento acariciou-me a cara assim que saí da tenda. A madrugada ainda estava escura, mas a claridade começava aos poucos a ganhar a batalha contra as trevas. A ilha é deserta, mas tem uma vida própria, ritmos, cheiros, sons. À medida que me afasto, o ruido do vento fica mais intenso, como um uivo distante que aprendemos a deixar de ouvir. Inspiro. Sinto o cheiro a maresia e tento isolar o som da rebentação das ondas.

Ainda em contemplação, chamam por mim. A aurora já clareou, está na hora de nos pormos ao caminho que, ao fim de dez dias, já se faz por intuição. Areia, terra, cascalho, dunas. Os meus pés já conhecem as sensações, sabem por onde ir mesmo quando me distraio a olhar para as osgas que ainda não recolheram às suas casas no meio de pedras e pedrinhas. Tudo está seco. As ervas, sem vida, cedem à nossa passagem. Olho o horizonte. A paisagem cresce em vários tons de castanho de uma existência quase parada, imaculada.

À medida que nos aproximamos da praia do lado oeste da ilha, passamos pelo território das calhandras, essa pequena ave tão característica, com estado de conservação ameaçado na ilha. Precisam de água para se reproduzirem e já não chove há longos meses. Não fogem de nós: conhecem as nossas rotinas e sabem que temos outro destino.

Já lá vão 45 minutos, mas a caminhada ainda vai no início. Contornamos as dunas, avançando para a praia e o cenário transforma-se. É um sufoco sempre que aqui chego. Já controlo as lágrimas, que teimavam sempre em cair, mas não o crescente sentimento de impotência e de revolta pelo cenário que encontro. Estou numa ilha deserta, mas à minha frente estão largos quilómetros de uma praia tomada de assalto pelo lixo. Não existe nada que possamos fazer, disseram-me. O lixo chega todos os dias através da imensidão do oceano.

Recuso-me a aceitar esta sentença e, teimosamente, todos os dias recolho o máximo de lixo que posso e levo de volta para o acampamento, mas ele nunca diminui. Mais, a cada dia, o cenário é um bocadinho mais triste e mais sufocante que no dia anterior.

Estamos numa das principais praias de nidificação da tartaruga marinha comum, Caretta caretta, na ilha deserta de Santa Luzia, em Cabo Verde. No meio deste cenário dantesco, todos os dias, durante cinco meses, dezenas de tartarugas saem do mar para escolher um local para fazer o seu ninho, onde cuidadosamente depositam os seus ovos, camuflado de forma eximia antes de regressarem ao mar. Dizem que as tartarugas têm memória carnal. Regressam sempre ao local onde nasceram para desovar, muitas vezes passados 20, 30 ou 40 anos. Penso nas adversidades que tiveram de enfrentar até hoje. Apenas uma em cada mil tartaruguinhas bebé chega à idade adulta e agora, para além dos seus predadores naturais, têm mais um: o ser humano, personificado pelo seu lixo, pelos seus hábitos de consumo e, sobretudo, pela sua imensa indiferença e desprezo pela vida, tão imensos quanto o oceano.

Também eu me estou a tornar, de certa forma, indiferente. Já quase não vejo o lixo e procuro focar-me no trabalho. Identificar o rasto das fêmeas, perceber se conseguiram voltar ao mar ou se estão perdidas em terra, e assinalar os ninhos. Tento enganar-me a mim própria, assegurando-me que estou a fazer tudo o que posso enquanto vou recolhendo os pedaços de lixo mais perigosos para as crias. Um dia, identificamos lixo proveniente de mais de 25 países apenas numa pequena extensão da praia. Numa ilha deserta. A praia ganhou o nome de Praia dos Achados e não é por acaso: aqui encontra-se de tudo um pouco, desde as habituais embalagens de champô, aos inúmeros chinelos sem par, sem esquecer seringas, bisnagas e, em larga maioria, resíduos da indústria da pesca, como boias, redes, armadilhas, cordas…

O relógio marcava as nove da manhã quando chegamos ao final do extenso areal. Dezoito rastos e cinco ninhos, sinal de que a época de desova está quase a terminar.

Enquanto descanso e antecipo a caminhada de regresso, agora já debaixo de sol forte, sento-me num grande tubo preto, cujo material não consigo identificar. Dou por mim com o olhar perdido na imensidão das dunas que moldam este lado da ilha, só reparando que Cecile vinha com ar aflito em direção a mim quando já estava a uma distância de dois passos. A sua expressão era um misto de pânico e incredulidade, enquanto me implorava que a seguisse. Cerca de três metros mais acima, Cecile guiou o meu olhar para uma rede de pesca abandonada, mais uma entre as centenas que se encontram naquela praia. Deixei-me levar e, de repente, o meu coração deu um baque. O mundo parou e senti o chão a fugir-me dos pés. Se fosse hora para isso, teria caído de joelhos e chorado, chorado muito, até conseguir lavar a alma, o desespero e a impotência. Mas elas ainda estavam vivas. Ainda estavam a lutar. E nós teríamos de lutar por elas e com elas, contra o tempo e as circunstâncias.

Ao aproximar-me, num movimento só, confirmei o que vi ao longe: três tartaruguinhas bebés, totalmente enleadas numa rede de pesca, a moverem-se de forma desesperada tentando libertar-se. À medida que se mexiam, os finos fios da rede iam ficando cada vez mais apertados, à volta dos seus pescoços e das suas frágeis patas. As tartarugas marinhas são extremamente sensíveis ao calor, podendo morrer de desidratação após breves horas ao sol e, quando são bebés, a sua resistência é ainda menor, por isso o relógio estava contra nós.

Os primeiros momentos foram de avaliação. A Cecile fazia sombra, enquanto eu tentava perceber de que forma as poderíamos libertar sem magoar. Com as mãos? Não, os dedos são muito grossos e ficaria sem margem de manobra. Pedras? Paus? Faca? Tudo parecia demasiado desadequado ou perigoso. Pelo meio de sucessivas tentativas sem sucesso, as tartaruguinhas iam ficando cada vez mais frágeis. O desespero ia lentamente apoderando-se de mim. Não as posso deixar morrer, não as posso deixar morrer, não as posso deixar morrer, não assim, entoava como um mantra na minha cabeça. O coração batia acelerado quando me lembrei de experimentar o lápis que costumamos usar nas patrulhas para afrouxar os fios. Suficientemente afiado, mas não ao ponto de as poder ferir. O que se seguiu foram vinte minutos de silêncio enquanto os dedos e o lápis faziam o seu trabalho, à velocidade máxima que podiam, e o coração me ia assegurando que sim, que íamos conseguir!

Vencemos a batalha sem nenhuma baixa e o caminho até perto do mar fez-se de peito cheio, orgulho e sensação de missão cumprida. Deixamos as pequenas na areia molhada e, depois de uma pequena desorientação inicial, ficamos a vê-las a dirigirem-se para o mar e, por fim, a desaparecerem na vastidão do oceano. A primeira grande prova de vida já a passaram. A vida por um fio.

Ficamos a contemplar o oceano mais uns minutos e não demorou muito até que os sentimentos de revolta e impotência tornassem a chegar de rompante, sem pedir para entrar. Lentamente, virámos costas ao mar e começamos a caminhada de regresso ao acampamento. Quantas mais tartarugas iriam ficar presas nas redes? Quantas já ficaram e não vimos a tempo? Quantas ficarão quando acabar a época de vigilância?

Quem podemos responsabilizar? Culpar? O que podemos fazer diferente? O que podemos mudar? Ficará tudo igual? Depois do que sabemos, do que vimos, do que fizemos? Ficará tudo igual? Enquanto caminhava por meio das dunas e sentia o sol a queimar-me a pele, com o lixo recolhido nessa manhã às costas, soube que não ia desistir, mesmo quando todos o fizessem. Chegados ao acampamento, a vida decorria normalmente. Os pardais faziam malabarismos para apanhar a última migalha de pão e as lagartixas espraiavam-se ao sol. A vida continuava igual, apesar de tudo estar diferente. Neste dia, perdi uma parte da minha inocência e endureci uma parte do coração. É difícil ver a destruição que podemos causar em animais tão frágeis, em ecossistemas tão pristinos. É difícil estar do lado de quem destrói, de quem não se importa, de quem é indiferente.

O lixo vem sempre de algum lado, seja de terra ou de embarcações de pesca ou de recreio. Temos sempre de começar por algum lado. Amanhã será um novo dia.

 

Este texto foi desenvolvido como parte do projeto final da disciplina de educação para o ambiente: entre os fundamentos e a ação, da pós-graduação em ambiente, sustentabilidade e educação da universidade de évora. se chegou até aqui, pedia que me ajudasse a completar este trabalho, respondendo ao questionário abaixo:

 

As respostas são anónimas. Muito obrigada pela ajuda!

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