Entrevista Salomé Areias: Fashion Revolution Portugal

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A Fashion Revolution é um movimento criado por cidadãos e para cidadãos. Pretende, de forma muito simples e prática, mostrar que é possível alterarmos os nossos hábitos de consumo e com isso contribuir para uma mudança de paradigma da indústria.

Este movimento surgiu depois da queda do Rana Plaza, em 2013, quando um grupo de desconhecidos decidiu que bastava. Que estava na hora de fazer alguma coisa. Que era tempo que toda a gente conhecesse a verdade por trás de uma indústria tão resplandecente, mas tão suja ao mesmo tempo.

Em Portugal, o movimento surgiu tímido pelas mãos de Salomé Areias, Designer de Moda de formação, em 2014, mas apenas começou a ganhar mais expressão no nosso país a partir do ano de 2016, quando começaram também a fazer mais eventos e ações de sensibilização sobre os segredos da indústria da moda.

Os próximos eventos da Fashion Revolution Portugal acontecem já nos próximos dias 26 e 28 de abril, no Porto e em Lisboa, respetivamente, e inserem-se, claro, no âmbito da Fashion Revolution Week.

Aproveitei a oportunidade para falar um pouco com a Salomé, e perceber o que é isso da moda consciente e como estão os portugueses a aderir ao movimento. A entrevista é muito interessante e dá-nos dicas reais sobre como podemos começar a alterar os nossos comportamentos. Não deixem de ler até ao fim!

Salomé Areias Fashion Revolution

Salomé Areias, Country Coordinator da Fashion Revolution em Portugal

Âncora Verde [AV]: Olá Salomé. Muito obrigada por teres aceite este convite e por estares aqui a partilhar connosco um bocadinho sobre este projeto. O Fashion Revolution é um movimento internacional. Como surgiu o interesse / oportunidade de o trazer para Portugal?

Salomé Areias [SA]: Olá Leila. Obrigada pelo convite. Quando trouxe o Fashion Revolution para Portugal em 2014, já fazia algum tempo que, no meu percurso profissional, tinha percebido que o sistema da Moda escondia uma verdade atroz, e já fazia um par de anos que tinha renunciado por completo o consumo nas lojas chamadas fast-fashion. Acompanhei o caso da queda do Rana Plaza em 2013 com mais pesar ainda, e vontade de fazer alguma coisa em relação ao assunto. Enquanto analista de tendências na Science of the Time e Trendwolves, tinha acompanhado a emergência da Sustentabilidade, estava nessa altura a abrir o primeiro curso em Portugal de Moda Sustentável e de repente o Fashion Revolution surgiu nas minhas redes sociais com uma ideia brilhante: o movimento #WhoMadeMyClothes! Mandei logo um mail à Carry a oferecer ajuda para divulgá-lo – estávamos a 5 dias do primeiro Fashion Revolution Day – ao qual ela respondeu com a proposta para a coordenação em Portugal.

AV: Apesar deste movimento já estar presente no nosso país desde 2014, sei que consideras que só em 2016 conseguiram ter estrutura para começar a fazer eventos e ações de forma consistente. Que balanço fazes destes dois últimos anos? O interesse por parte dos consumidores tem sido maior? Notas que estamos a ficar mais conscientes?

SA: Noto que queremos ficar mais conscientes, que é ainda melhor! Em 2016, tanto quem se juntou a mim na equipa, como quem se juntou ao movimento virtualmente e presencialmente nos eventos, foram aquelas pessoas que partilhavam já uma sólida sensibilidade e know-how sobre o tema. O início deste movimento em Portugal serviu para reunir, unir forças e trocar ideias entre aqueles que já há muito pensavam sobre isto. E isso teve um poder sinérgico imenso. Exemplo disso é o projecto Alinhavo que foi cozinhado na nossa primeira Unconference, e que hoje prepara-se para lançar a primeira plataforma online pelo consumo consciente. No espaço de dois anos, passámos de “isso é tudo muito bonito, mas só tenho dinheiro para ir à Primark” para “eu não sou desta área, mas gostava de saber como posso fazer mais”. Houve designers que se converteram em investigadores desta causa e consumidores que se converteram em designers amadores. Penso que vários movimentos similares ao Fashion Revolution fizeram o seu papel de forma brilhante em todo o mundo. Não era difícil sensibilizar uma camada da população que já estava em busca de um lifestyle que respeitasse a sua saúde, a comunidade e o ambiente há pelo menos uma década. Bastou informar. Pois o que impedia, e ainda hoje impede, o consumidor de agir é o facto de ele desconhecer o seu peso na equação. Todos nós fizemos o Rana Plaza cair.

AV: Como é que se começam a mudar mentalidades?

SA: Se há coisa que não é possível alterar deliberadamente no outro é a mentalidade. Surge no meio social (com mais ou menos opressão) mas é um fenómeno individual que só acontece por livre arbítrio. Na área das tendências de consumo, chama-se a este fenómeno difusão da inovação. A mudança social começa sempre no indivíduo altamente curioso e permeável à informação e que tem o poder e carisma para evangelizar o valor dessa mudança. Posteriormente quem adere tem de empatizar, e quem empatiza tem de entender. Por isso a informação e a educação são tão importantes no Fashion Revolution. Justamente porque a mudança tem de surgir dentro de cada um: a informação traz poder, e o poder traz criatividade. E é esta autonomia criativa que queremos ver nesta indústria como a verdadeira moeda de troca para uma sociedade justa e economicamente sustentável.

AV: A mudança deve começar por quem? Pelos consumidores ou pela indústria?

SA: Esta é a pergunta do ovo e da galinha. Mas talvez tenha uma resposta mais fácil. Penso que ambos devem agir ao mesmo tempo e devem agir juntos, pois é na sua interdependência – e, no entanto, distância – que está a reticência em evoluir. O consumidor tem todo o poder para mudar as marcas com o seu comportamento de consumo, mas é ingrato que não tenham alternativas consistentes para o fazer. As marcas têm todo o poder para mudar o consumidor, mas não está na sua génese fazê-lo, pois as corporações são entidades abstractas sem autonomia critica, cujos empregados visam simplesmente operacionalizar um modelo de negócio pré-definido. Como tal, precisam de ter esse insight de negócio de antemão, para ajustar a sua estratégia. É uma pescadinha de rabo na boca. Todos os sectores que estão entre o consumidor e as marcas (designers, produtores, retalhistas, gestores de produto, distribuidores, formadores, etc.) devem mover-se aos poucos e ao mesmo tempo, abrindo pequenos espaços para mais curiosidade, mais informação e para mais acção, como um organismo vivo.

AV: Tendo em conta todos os problemas da chamada “fast fashion” e daquilo que está a fazer ao nosso planeta e às pessoas que trabalham nesta indústria, consideras que precisamos de alterar completamente os nossos padrões de consumo? Existe um meio termo ou é tudo ou nada?

SA: Não há uma formula perfeita para o cidadão exemplar, e também não estamos aqui para criá-la. A única coisa que encorajamos é a acção em plena consciência, o que é algo fácil de ir conseguindo aos poucos, se mantivermos a curiosidade e descoberta sobre o impacto dos nossos actos enquanto consumidores e enquanto empresários. Uma longa caminhada começa sempre pelo primeiro passo. Por isso acreditamos que o movimento #WhoMadeMyClothes faz a diferença. É um simples (e aparentemente inofensivo) post em que todos podemos perguntar às marcas das nossas roupas, quem é que as fez e em que condições.

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AV: Já consegues ter alguma perceção do impacto que estão a causar na indústria e nas marcas de moda rápida?

SA: Em Portugal, já algumas fábricas têm aderido ao movimento #IMadeYourClothes que é uma espécie de resposta ao movimento dos consumidores #WhoMadeMyClothes, mas desta vez feito pelos makers e produtores que decidem abrir as suas portas e mostrar os rostos e as salas de trabalho, outrora escondidos por um sistema perigosamente pouco transparente. Relativamente a marcas de moda rápida Portuguesa, não temos tido grande reacção. Mas aproveitamos para desafia-las a enviar-nos fotografias da sua produção e costureiros, tanto em Portugal, como na China, Bangladesh, e outros tantos países onde produzem as suas roupas. Saibam como participar aqui.

AV: Porque é que é tão importante fazermos uma revolução na moda?

SA: Porque metade do mundo está a trabalhar 12 horas por dia em troca de 1kg de arroz para que a outra metade do mundo compre biliões de peças de roupa, mas as use apenas 12 horas. No meio disto tudo, o potencial criativo perde-se com a pressão do timings. Os designers são explorados, os produtores fecham as portas, as multinacionais estrangulam o comércio local. Ou seja, alguém se mata a trabalhar, para alguém se endividar e no final de contas não fazer uso do investimento. Os números não mentem: quase um terço da nossa roupa está no armário há mais de 1 ano. Não faz sentido.

Como se não bastasse, a produção desmensurada de roupa é a segunda que mais danos ambientais causa no mundo. Está à frente no desperdício de água, extracção de petróleo para a produção de poliéster, emissão de CO2 na atmosfera, desertificação relacionada com a indústria pecuária, destruição de ecossistemas, entre outros.

Acima de tudo, as revoluções existem quando um sistema está obsoleto e deixou de fazer sentido. Ora, este sistema fast-fashion está a matar.

AV: É importante fazermos perguntas?

SA: A pergunta é a nossa primeira arma enquanto consumidores. E é a arma perfeita contra a falta de transparência no sistema de Moda, que tem vindo a facilitar actividades ilícitas ou pouco éticas. Desde a revolução industrial que temos vindo a alimentar e cimentar uma distância gigante entre o consumidor e o maker, o que resultou na receita perfeita para o consumo insensível, desanexado do valor do trabalho, que passou de criativo a mão-de-obra num ápice. Ao pedirmos às marcas que nos voltem a conectar com o maker, estamos não só a fazer uma exigência que vai ser atentida como necessidade do consumidor e potencialmente integrada na estratégia da marca, como a criar em nós uma maior consciência sobre aquilo que faz parte das nossas vidas. Uma espécie de How It’s Made, em versão activismo. Durante a Fashion Revolution Week (de 23 a 29 de Abril) encorajamos toda a gente a participar no movimento #WhoMadeMyClothes: 1. Tira uma selfie com a roupa do avesso; 2. Pergunta à marca #WhoMadeMyClothes; 3. Não te esqueças de acrescentar #FashionRevolution e marcar o Fashion Revolution Portugal, para que possamos fazer repost.

AV: É possível comprar de forma ética e sustentável em Portugal sem gastar muito dinheiro?

SA: Pergunta de 1 milhão de dólares, mas que afinal até é muito baratinha! Depende do que cada um considerar gastar muito dinheiro. Mas garanto-te que comprar umas boas botas alentejanas sai mais barato do que comprar 10 botas na Lefties ou na Primark (ou umas botas em certas marcas de luxo que produzem ao mesmo preço) que prefazem 10 anos de uso no total. É tudo uma questão do quão fomos absorvidos pelo estigma do consumo rápido e constante. Em vez dessa, a pergunta que todos queremos fazer é: é possível comprar de forma ética e sustentável em Portugal sem gastar muito dinheiro e ainda assim mudar consecutivamente de estilo? É mais difícil, mas ainda assim possível. Há quantidades inimagináveis de roupa neste país a circular pelas lojas, fábricas, contentores, aterros, e casas dos Portugueses. Para além das lojas e mercados em 2ª mão que são a opção mais popular, temos as vendas de garagem dos amigos dos nossos amigos (olhem o que as redes sociais nos trouxeram!), temos as chamadas “lojas de falência” que vendem o dead stock e peças de pequeno defeitos das nossas fábricas, temos as nossas fábricas (com produção de grande qualidade) a vender produtos de pequeno defeito e de estações anteriores nas chamadas “lojas de fábrica”, e ainda algum comércio local de lavores made in Portugal que vendem bons básicos que nunca saem de moda. Contudo, não se inibam de visitar as feiras de artesanato pelos caminhos de Portugal, pois os preços estão longe do que estamos habituados a ver nas prateleiras das lojas para turistas. Olhando para estas hipóteses de compra, ainda assim digo: o Swap Market é a maneira mais sustentável e barata (custo zero) de ter um guarda-roupa diferente todas as estações. Os Swap Markets do Fashion Revolution Week vão acontecer dia 28 de Abril no Impact Hub em Lisboa e no C. C. Bombarda no Porto.

AV: As compras em segunda mão, os mercados de trocas e o upcycling podem ser boas alternativas à “fast fashion”? Existem outras?

SA: Sim. Por ordem de prioridade existe o revisitar o próprio guarda-roupa ou o guarda-roupa dos teus familiares (já há bons serviços de consultoria de imagem que ajudam o consumidor a fazê-lo, como do The Fashion Hunter, que irá estar presente no Fashion Revolution Week dia 28 de Abril no Impact Hub Lisbon), existe o empréstimo ou aluguer de roupa, existe o remendar/customizar a roupa que já temos que pode ir deste uma simples bainha, a colocar um patch, cerzir, fazer um bordado ou colocar apliques ou estampas (o Fashion Revolution Portugal vai ter vários workshops a acontecer no Impact Hub Lisbon, também dia 28 de Abril), e existe a criação do zero de uma peça de roupa, que passa por desenhá-la, fazer os moldes, cortar o tecido e costurar. Temos vários parceiros que ensinam todas estas artes, entre eles a Companhia das Agulhas. Só tens de aprender uma vez!

AV: Que conselho darias a quem está a começar a ficar mais consciente para os problemas da moda? Por onde começar?

SA: Procura quem saiba mais, une-te e transforma! Se repetires este lema, vais encontrar sempre os caminhos que queres seguir, sejas consumidor, sejas maker, sejas empresário. Se fores a uma loja pergunta pela origem dos produtos, se deitares roupa no contentor pergunta onde irá parar, se criares um produto questiona-te sobre todo o seu ciclo de vida, se tens um negócio sabe mais sobre o impacto dos métodos de produção, sabe mais sobre os fornecedores com quem trabalhas. Como explica o movimento, #becurious, #findout, #dosomething.

AV: Muito obrigada!

SA: Obrigada nós!

Fashion Revolution

Agradeço à Salomé a sua simpatia e sabedoria e o tempo dispensado a responder às minhas perguntas. Eu, por aqui, vou continuar a apoiar fervorosamente o movimento, e espero que o façam também. Podem seguir os eventos de Portugal aqui, no Facebook, ou no Instagram.

Que outros temas ou entrevistas gostavam de ver mais por aqui? Deixem as vossas ideias nos comentários, que eu agradeço muito. 🙂

 

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